domingo, 10 de setembro de 2006

Carlos Paredes

«Enorme, desajeitado, com o seu eterno sorriso tímido de quem pede desculpa de existir. Sentou-se, aconchegou a guitarra a si, agarrou-se à guitarra e a guitarra a ele, passaram a ser um corpo único, um só tronco de música e de raiva, de sonho e de melodia, de angústia e de esperança, exprimindo por sons tanta coisa que nós não tínhamos palavras para dizer» - José Carlos de Vasconcelos recordava assim Carlos Paredes após ter assistido, no Teatro Avenida, na Coimbra dos anos 60, a uma inesquecível festa da Tomada da Bastilha que comemorava também o dia do estudante.

Nascido em Coimbra a 16 de Fevereiro de 1925, filho de Artur Paredes, neto de Gonçalo Paredes e sobrinho-neto de Manuel Rodrigues Paredes, Carlos Paredes é herdeiro de uma vasta tradição guitarrística familiar. A guitarra corre-lhe nas veias, confundindo-se com o seu próprio sangue. Foi aliás, fruto dessa influência familiar, especialmente a partir da guitarra de seu pai, que Carlos Paredes apreendeu uma outra forma de tocar, mais brusca e violenta, uma guitarra transformada e inovadora, sempre em busca da perfeição. Como ele próprio disse, «foi com meu pai que eu aprendi a tirar da guitarra sons mais violentos, como reacção ao pieguismo langoroso a que geralmente a guitarra portuguesa estava ligada». Assim se explica que, numa fase concreta da música de Carlos Paredes, tenha acontecido uma forte valorização e um superior aproveitamento das raízes e da tradição da música popular portuguesa, facto que contribuiu decisivamente para o engrandecimento da guitarra portuguesa, tal como acontecera já, mais concretamente, por mérito de Artur Paredes.

Que fique assim bem claro que Carlos Paredes nunca rejeitou a influência que recebeu, tanto da música popular portuguesa como do próprio fado de Coimbra. O que ele soube fazer foi renovar e reinventar a guitarra portuguesa, especialmente a partir de uma geração de 60 revitalizada por novos conceitos sócio-culturais, onde floresciam as vozes de José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Luís Góis e António Bernardino, bem como a poesia de Manuel Alegre, a guitarra de António Portugal e as violas de Rui Pato e Luís Filipe, em suma, toda uma geração coimbrã que, preservando a riqueza etnomusical que a antecedia, revolucionou a guitarra por dentro da guitarra e cantou valores que a projectariam inevitavelmente no futuro. Nas suas palavras, «este fenómeno tem origem, remotamente, numa escola própria, que é o fado de Coimbra, com as suas virtudes e as suas técnicas, dando assim as bases necessárias para a evolução que se seguiu».

Mas, até mesmo nessa evolução que se seguiu, é ainda notório um certo espírito de resistência e inovação que Artur Paredes e Edmundo Bettencourt, homens ligados ao início do movimento da «Presença», souberam transformar numa nova atitude musical que, no dizer de Carlos Paredes, fizeram da guitarra «um instrumento diferente, capaz de transmitir uma violência tremenda». Foi justamente a partir desse ambiente de revolta e inovação, fora de qualquer esquema prévio e rígido de execução, que Paredes começou a construir o seu estilo inovador, feito de trocas de experiências em que os sentidos o levaram a descobrir o instrumento por instinto - aquilo a que chamou "escola de rua", dizendo que «o guitarrista tem de integrar a guitarra em si mesmo, tornando-a a sua voz (...) A música é como se fosse uma voz que fala de emoções».

E essa guitarra inquieta, feita do mesmo sonho com que os nossos marinheiros partiram a descobrir os sete mares, foi a arma, ou a voz, que Carlos Paredes encontrou para melhor exprimir a sua sede de descoberta e com a qual percorre, num incessante «movimento perpétuo», esse desconhecido caminho em busca das melodias que estão para lá do "Bojador", para lá da sua guitarra outra.

Desse gosto pela aventura nasce uma vasta obra musical que, passando pelo Teatro e pelo cinema, faz de Carlos Paredes um dos mais completos compositores/instrumentistas que a guitarra portuguesa conheceu. No teatro, destacam-se, entre outras, as colaborações com José Cardoso Pires na histórica encenação de Fernando Gusmão para o Teatro Moderno de Lisboa, em 1964; com Carlos Avilez, no CITAC, em As Bodas de Sangue, de Garcia Lorca; com o Teatros Experimental de Cascais, em A casa de Bernarda Alba, também de Lorca; ou ainda, já nos anos 70, numa estreita colaboração com o Grupo de Teatro de Campolide, para o qual compôs diversas peças musicais e fez inúmeras selecções musicais.

No cinema, foi também frutuosa a sua com colaboração com diversos realizadores, tais como Manoel de Oliveira, Paulo Rocha ou José Fonseca e Costa, entre muitos outros, cujos filmes originaram belíssimas peças para guitarra, como a Canção Verdes Anos ou o tema Mudar de Vida, dois dos seus ex-libris.

A sua obra fez escola e assume, na cultura musical portuguesa, um valor incalculável. Que as novas gerações de instrumentistas e compositores o saibam perpetuar no tempo, não se limitando a imitar a sua técnica. Se isso é impossível, saibamos respeitar a sua personalidade e transpor para as nossas escalas os valores pelos quais a sua guitarra sempre se entregou à luta. Se o conseguirmos, estaremos certamente no rumo certo.

Manuel Portugal(Texto escrito para publicação no Jornal de Coimbra)
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